O caso do bebê britânico Charlie Gard levanta a discussão: deixar morrer no hospital é eutanásia de Estado ou melhor interesse do paciente?
O bebê britânico Charlie Gard, de 10 meses (Reprodução/@Fight4Charlie/Twitter)
Nos últimos dias o mundo vem acompanhando caso do menino inglês Charlie Gard, que tem uma doença genética intratável e incurável. Charlie tem 11 meses de vida, e o hospital em que ele está internado solicitou (e obteve) aprovação de todas as instâncias judiciais do Reino Unido para desligar os aparelhos médicos que mantêm Charlie vivo. Seus pais jamais concordaram com esta decisão e buscam apoio para transferi-lo para outro hospital ou para a casa, e para que ele tenha acesso a uma terapia “experimental” que estaria disponível nos Estados Unidos.
Qual é a doença de Charlie?
Charlie tem uma doença genética e hereditária muito rara, com apenas 19 casos comprovados cientificamente e publicados na literatura médica. Certamente existem mais casos desta doença no mundo, mas Charles é o vigésimo a ter esta doença confirmada. Trata-se de uma mutação nas duas cópias do gene RRM2B, situado no cromossomo 8, e, portanto, dentro do núcleo de cada célula de Charlie.
Este gene é responsável por produzir uma enzima cuja função principal é auxiliar no processo de duplicação de outro tipo de DNA que temos na célula, porém fora do núcleo, dentro das organelas chamadas mitocôndrias. Se RRM2B não produz esta enzima, o DNA mitocondrial não consegue se dividir. É o que os médicos chamam de Síndrome de Depleção Mitocondrial.
As mitocôndrias são as fábricas de energia das células. Quando elas funcionam mal, o organismo todo sofre um “black-out”, mas, em especial, os tecidos que mais precisam de energia, o cérebro e os músculos. Importante ressaltar que a forma de Síndrome de Depleção Mitocondrial que Charlie tem, a Encefalomiopatia de início precoce, é a mais grave das Síndromes de Depleção Mitocondrial e diferente de outras doenças mitocondriais.
No caso da doença de Charlie, cérebro, músculo, assim como os rins, fígado e coração já estão muito afetados. Charlie já tem uma alteração muito grave nas células cerebrais e musculares. A alteração cerebral impede Charlie de se movimentar, de ouvir, de enxergar bem, de se alimentar espontaneamente e provoca grave e repetidas convulsões há 6 meses.
A alteração nos músculos o impede de fazer movimentos, não só nos braços, nas pernas, e nos músculos da face, mas também impede o músculo diafragma, responsável pela respiração, funcionar sozinho. Charlie precisa, desde os dois meses, de um aparelho para que possa respirar e outro para se alimentar. Se estes aparelhos forem desligados, ele morrerá em poucas horas.
Os outros 19 pacientes com a mesma doença ou morreram antes de completar seis meses de vida ou se mantiveram vivos por mais tempo graças a aparelhos como os que Charlie usa hoje.
Existe algum tipo de tratamento para a doença de Charlie?
O dilema se torna mais complexo porque não há nenhum tratamento disponível atualmente para esta doença. Para uma forma parecida da doença, mas que afeta somente os músculos e não o cérebro, existe um tratamento experimental,desenvolvido nos Estados Unidos, que aparentemente melhorou a qualidade de vida e sobrevida de alguns pacientes. Mas a forma da doença que Charlie tem, causada por mutação no gene RRM2B, é reconhecidamente muito mais grave do que a forma para qual este tratamento experimental já foi utilizado, em casos causados por mutação no gene TK2.
Dos outros 19 pacientes que têm exatamente a mesma doença que Charlie, nenhum se submeteu a este tratamento, e, portanto, não existe absolutamente nenhuma evidência científica se pode ou não levar a qualquer benefício: para a forma da doença específica de Charlie Gald, este medicamento não foi experimentado sequer em animais. Charlie seria o próprio e primeiro experimento.
Ceticismo à parte, a chance de este medicamento trazer aumento de sobrevida ou qualquer benefício importante na qualidade de vida de Charlie, em especial levando-se em conta a grave e irreversível lesão cerebral que o impede de ver, ouvir, ou sequer se movimentar, é próxima de zero.
O próprio médico norte-americano que tem experiência com esta terapia utilizada apenas para outras formas de Síndrome de Depleção Mitocondrial concordou que, no caso de Charlie, ela seria inútil. Importante ressaltar que o hospital na Inglaterra onde Charlie está internado, Great Ormond Street Hospital, é considerado um centro de excelência para doenças mitocondriais. Uma prova disto é terem definido com poucos meses de vida o diagnóstico correto de Charlie, sendo que até então só havia 19 casos conhecidos no mundo.
No Brasil, país que nunca levou a sério a implantação de uma Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, a gigantesca maioria destas crianças morre sem sequer ser diagnosticada. Isto impede, entre outas atitudes, a oferta do Aconselhamento Genético aos familiares, e esta falta de informação propicia a repetição de outros casos dentro destas famílias. Os pais de Charlie tem 25% de chance de vir a ter outro filho com a mesma doença, em cada gestação futura. Existem alternativas para que próximos filhos não venham a ter a mesma doença que Charlie.
Eutanásia de Estado?
Os médicos de Londres argumentam que prolongar a vida de Charlie artificialmente só tem trazido sofrimento a todos e, em especial, ao pequeno Charlie. Os pais argumentam que enquanto há vida, há esperança.
Casos com o de Charlie, de crianças com doenças graves, fulminantes e sem tratamento, são conhecidos pelos médicos do mundo todo que lidam com doenças extremamente raras. O mais inusitado neste caso é que, ao contrário da vontade dos próprios pais, o Estado inglês decidiu que não se deve mais estender a vida de Charlie.
Teria o Estado o direito de tomar esta decisão acima da vontade dos próprios pais? A Suprema Corte inglesa decidiu contra a vontade dos pais, acreditando que o melhor interesse de Charlie é que ele possa morrer com dignidade, ao invés de se submeter à terapia experimental nos Estados Unidos.
Uma decisão contra a vontade dos pais seria uma eutanásia de Estado? Ou o fato de que o hospital oferecerá cuidados paliativos após desligar os aparelhos não configuraria uma eutanásia, mas sim o que se conhece na Medicina Legal como “ortotanásia”?
A ortototanásia é uma forma de eutanásia dita passiva, em que o médico deixa de agir e espera a evolução natural da doença. Independente do termo legal a ser usado, no “caso Charlie Gard”, tendo a família a vontade de prolongar a vida, entendo que deva ser respeitada, pois são eles os detentores da vontade de Charlie, que está em situação de impossibilidade de manifestar sua vontade. Qualquer atitude ativa (de agir interrompendo a vida) ou passiva (deixar de agir por omissão voluntária) seria, na nossa legislação, um ilícito, tanto do ponto de vista ético quanto legal.
O que você acha? Desligar os aparelhos e manter apenas suporte paliativo seria eutanásia ou o melhor interesse do paciente?Em um caso como o de Charlie Gard, o Estado tem o direito de tomar esta decisão mesmo sem a autorização dos pais?