O homem com milhares de cérebros – Boston, 1931

Harvey Cushing, M.D.

 

O homem com milhares de cérebros – Hospital Peter Bent Brigham, Boston, 1931

Harvey Cushing era um deus entre os cirurgiões. E ele também frequentemente se comportava como um. Admirado e temido, na mesma medida. Seus pacientes o adoravam enquanto seus assistentes ficavam terrificados diante dele. Cushing era frio com sua família e intimidador com seus amigos, mas um modelo de cuidado e ternura com seus pacientes. Os colegas o descreviam como duro e egoísta. Ele era tão concentrado em seu trabalho, que quando lhe disseram que seu filho havia morrido, em um acidente de carro, ele manteve uma cirurgia previamente agendada. Quando se dedicou à neurocirurgia, Cushing fazia milagres, cuidando dos casos muito difíceis – foi o primeiro neurocirurgião de verdade.

Uma cirurgia de Cushing era um evento intenso que poderia demorar mais de 8 horas. Às vezes, ele contava com outro cirurgião para realizar a abertura e a conclusão do trabalho, mas não havia dúvida nenhuma de que ele estava no comando. Cushing sentava em uma banqueta ao lado da mesa, de maneira que ficava no mesmo nível da cabeça do paciente. Atuava devagar, era metódico e pedante. Cada vaso sanguíneo era pinçado até que o orifício no escaldo do paciente estivesse rodeado de clipes metálicos. Ele ainda inseria outros grampos e cortava, raspava e cauterizava meticulosamente quando removia tumores. Em alguns casos, eram bastante volumosos – uma testemunha descreveu um deles como “tão grande como uma laranja”.

O Cushing era um tirano no centro cirúrgico. Xingava seus assistentes se falhassem ao acompanhar cada um de seus movimentos e gritava com as enfermeiras se não colocassem em suas mãos enluvadas o instrumento correto. Mandava que cirurgiões saíssem da sala se achasse que não estavam atuando bem e maldizia seus colegas – usualmente, na presença deles. Ele exigia dos integrantes de sua equipe os mesmos altos padrões de atuação que esperava de si mesmo. Mas seus resultados eram excepcionais. Em média, somente um, em cada 10 de seus pacientes, morria. Considerando que muitos estavam gravemente enfermos, e que os antibióticos ainda não haviam sido inventados, era um recorde impressionante.

No dia 15 de abril de 1931, Cushing estava realizando sua 2.000º cirurgia de tumor. Sua paciente era Ida Herskiwitz, de 31 anos de idade. Ela vinha sofrendo de debilitantes dores de cabeça e, rapidamente, estava perdendo a visão. Não era uma cirurgia particularmente complexa “em termos relativos”, e o cirurgião conseguiu remover o tumor com sucesso, restaurando a visão da paciente.

Cushing começou a se interessar pela neurocirurgia quando se qualificou como cirurgião no final dos anos 1890. Apesar das terríveis taxas de mortalidade associadas à neurocirurgia, ele achou que a neurocirurgia seria a próxima revolução cirúrgica e queria fazer parte disso. De fato, não pensava apenas em participar – queria liderá-la. Com uma impressionante determinação. Ele conquistou sua meta em poucos anos. Por volta dos anos de 1930, estava no auge de seu poder. Muitas de suas inovações eram relativamente pequenas, mas reunidas tornaram a neurocirurgia eficaz e muito mais segura.

Uma dos grandes problemas da dupla Bennett e Godlee ( antecessores de Cushing ) era a grande quantidade de sangue que empapava a área onde estavam trabalhando. Um dos primeiros sucessos de Cushing foi encontrar uma maneira de controlar o fluxo de sangue durante os procedimentos. Ele queria ver o que estava fazendo, da mesma maneira que desejava evitar que seus pacientes sangrassem até a morte. Sua resposta ao desafio foi produzir pequenos clipes de peças caseiras e prender, com eles, as extremidades das artérias e veias. Ele ainda adaptou uma braçadeira pneumática, originalmente projetada para medir a pressão sanguínea, atuando como torniquete, reduzindo, assim, o fluxo de sangue no escalpo.

Cushing era rápido na adoção de novas tecnologias. Um dos primeiros cirurgiões a usar os raios X para realizar diagnósticos foi também pioneiro na utilização do “bisturi elétrico”. Este instrumento era um aperfeiçoamento do primitivo objeto usado, por Godlee e Bennett, para eletrocauterização, e que permitia ao cirurgião cortar e selar o tecido ao mesmo tempo. Infelizmente o equipamento podia também queimar e dar choques – tanto no paciente como nos membros da equipe cirúrgica – e em uma oportunidade fez o paciente saltar, na opinião de uma testemunha, “como uma rã”, quase caindo da mesa cirúrgica. Ainda assim, quando entrava em funcionamento, o bisturi elétrico era um grande avanço no controle do sangramento, particularmente útil para extirpar tumores.

O risco de infecção permanecia como a maior preocupação dos cirurgiões e Cushing operava em condições de extrema limpeza. Todos os que estavam na sala usavam máscaras, e o cirurgião fazia tudo com luvas. Ele também sabia a importância do cuidado pós-operatório. Depois das cirurgias, os pacientes eram acompanhados diuturnamente por uma equipe especialmente treinada para lidar com casos de neurocirurgia. Às vezes, os pacientes eram mantidos na própria sala de cirurgia para afastar o risco de contaminação. Esse tipo de cuidado foi o predecessor das unidades de terapia intensiva dos hospitais modernos.

Se Cushing deu todos os sinais de estar emocionalmente distante de sua família e colegas, agia de maneira completamente oposta nas relações com seus pacientes. Contam que a única vez que fez um comentário sobre a morte de seu filho, deixando-se levar pela emoção, foi no momento em que consolou os pais de uma criança morta. Há uma foto dele segurando a mão de um homem que sofria de acromegalia, um problema causado pela superprodução do hormônio do crescimento pela glândula pituitária, e que tem consequência um anormal aumento da altura de uma pessoa. Outra foto tocante mostra o médico segurando um brinquedo adorável na cabeceira de uma pobre criança que estava com a cabeça envolta em ataduras.

Fonte: Neurosurgeryblog.org

Cushing não podia admitir que um paciente pudesse morrer e faria tudo para ajudá-lo. Por isso, os que passaram por suas mãos sempre comentavam como ele era gentil e educado, frisando sua simpatia e compreensão. Ao contrário de alguns dos outros cirurgiões de sua época, não se recusava a oferecer cuidados básicos, como fazer a assepsia do paciente ou dar banho nele. E, para retribuir tanta dedicação e indiscutível talento, seus paciente legaram a ele seus cérebros.

O Centro de Referência de Tumor de Cushing reúne uma coleção original de fotografias, notas, registros hospitalares e cérebros. Nos arquivos da Yale há cerca de mil unidades, coletadas ao longo de mais de 30 anos. Estão dispostos em prateleiras, como se fosse frascos de doces. Cada um tem uma etiqueta com detalhes do caso, tratado por Cushing. São preservados em líquido próprio, com sua conformação preservada. A herança de Cushing é representada pelo conteúdo desses frascos, sobretudo porque estão intactos em razão das técnicas que ele desenvolveu – que estão sendo usadas ainda hoje. Ele ajudou a treinar uma nova geração de neurocirurgiões, e seu trabalho contribuiu para os futuros avanços da especialidade. Mais do que qualquer um outro, Cushing tornou possível a moderna cirurgia cerebral. Agora os cirurgiões podem operar com toda a segurança quanto à possibilidade de sobrevivência de seus pacientes.

Infelizmente, enquanto Cushing estava expandindo os limites da medicina moderna, outros pareciam empenhados em retornar à era das Trevas.

Mas isso, já é história para um próximo post !!! 😉

 Instrumentadoras de Plantão

Trecho do livro “Sangue e Entranhas – A assustadora história da cirurgia” de Richard Hollingham

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