A noite do porco – Hospital Nacional do Coração, Londres, 1960
Era uma desesperada e, última, tentativa de salvar uma vida.
Um dos principais cirurgiões cardíacos ingleses, Donald Longmore, estava na linha. O fazendeiro assegurou que o porco estava a caminho. Ele mesmo o entregaria, em seu Land Rover. Não demoraria muito. Tudo mais estava pronto.
Na sala de cirurgia, o paciente já estava na mesa, com o peito aberto e ligado aos tubos que serpenteavam da volumosa máquina coração-pulmão. Sangue vermelho escuro saía por um lado, sangue brilhante e claro fluía de volta para o operado. Os rítmicos e regulares batimentos da máquina mantinham o homem vivo. O anestesista, sentado ao lado de um complexo de recipientes com gás, monitorava calmamente o paciente. Uma enfermeira colocava alguns instrumentos recém esterilizados no carrinho; outra observava atentamente a máquina. Todas as luzes e mostradores pareciam indicar que estava tudo em ordem. Os cirurgiões nada mais podiam fazer, senão esperar pelo porco.
Eles haviam decidido chamar o que estavam fazendo de operação “de cavalinho”. O plano dos cirurgiões era implantar o coração e os pulmões de um porco em um paciente para que os órgãos do animal pudessem manter o homem vivo. Era um procedimento concebido para ajudar alguém com sérias doenças cardíacas. Aqueles órgãos trabalhariam, ficariam “de cavalinho”, acoplados aos do próprio paciente para oferecer algum alívio à pressão existente. Em resumo, poderiam fazer com que sobrevivesse por alguns meses até que os primeiros transplantes de coração, realizados em 1967 e 1968, fossem aperfeiçoados e fosse encontrado um doador apropriado. Poderia demorar muito. E ser até outro “miraculoso avanço” que os jornais gostavam tanto de relatar. Como sempre, o procedimento havia sido testado em animais e parecia funcionar. O paciente, em estado muito grave, tinha o coração muito debilitado. Essa operação experimental era sua única chance de sobrevivência.
Todos esperavam pelo porco.
O fazendeiro estacionou no beco, atrás do hospital. O animal guinchava. O primeiro pressentimento de Longmore de que aquela seria uma longa noite quando Thompson, o porteiro, se comunicou com ele pelo interfone.
-Sr. Longmore, aquele porco, em uma Land Rover que parou no beco, tem algo a ver consigo
-Sim, tem.
-Bem, ele acaba de escapar e virou à esquerda, seguindo pela Rua Winpole.
Relutante em fazer sua própria e valiosa contribuição ao progresso da medicina, o porco fugiu. Era surpreendente constatar como um porco era capaz de correr tanto, especialmente quando sua vida estava em perigo. Ainda vestidos com suas roupas de operar, as túnicas, os gorros, as máscaras e as botas, os integrantes da equipe cirúrgica saíram em perseguição ao animal.
O porco correu o mais rápido que suas curtas pernas aguentaram, mas não era páreo para os melhores cirurgiões cardíacos de Londres, que realmente conseguiram alcançá-lo a meio caminho da estrada. O animal guinchou, em protesto, mas Longmore o levou de volta ao hospital. Eram cinco horas da tarde e as pessoas estavam voltando para casa, depois do trabalho, portanto a rua estava relativamente movimentada. Muitos transeuntes prestavam pouca atenção no grupo esquisito que por ali passava. Somente um cavalheiro parecia estar um pouco preocupado. Levantando seu chapéu-coco, ele disse: “Desculpe, senhor, mas está seguindo no sentido errado, ao longo de uma rua de mão única”.
Na sala de operações, o paciente anestesiado permanecia na mesa. A máquina de coração-pulmão pulsava e respirava a seu favor. As enfermeiras e cirurgiões que ali permaneceram ainda esperavam. Ouvia-se o tique-taque do relógio. Onde estava o porco, afinal ?
O porco estava com Longmore no elevador. Ele não o deixaria escapar desta vez. Havia alguns visitantes ali, mas com certeza não se importariam que o médico se dirigisse, diretamente, sem parar ao último andar onde estava escrito”necrotério”. O que eles teriam com isso, se o cirurgião quisesse aquele porco para jantar ?
Chegando ao necrotério, Longmore solicitou um anestesista para adormecer o porco, que, então, seria morto para que seus órgãos fossem removidos. O profissional designado era judeu. Ele se recusou a matar o animal. Outro anestesista foi chamado, mas Longmore já estava imaginando se todos aqueles percalços valeriam a pena.
Na sala de operações, a máquina de coração-pulmão continuava a bombear. Os cirurgiões e enfermeiras esperavam.
O coração e os pulmões do porco foram removidos, mas havia outro problema a enfrentar: o paciente também era judeu. Quais eram as possibilidades, então ? Ele mesmo não estava em posição de julgar os méritos da operação, então, em vez de entrar em pânico (ou de começar a rezar), Longmore fez o que melhor lhe parecer, ligou para um rabino.
Quando explicou o que a equipe estava tentando fazer, o religioso ficou em completo silêncio. O cirurgião se desculpou por colocá-lo em uma situação tão difícil e concluiu que ele não queria se envolver. Houve outra longa pausa, de alguma maneira semelhante a um som abafado. Finalmente, o rabino pode responder:
– Desculpe, disse. Eu estava tentando parar de rir.
Ele respondeu, então, que se era uma genuína tentativa de salvar a vida do homem, então que Longmore deveria seguir adiante. Primeiro, o porco fugitivo, depois o anestesista judeu, e agora isso. Outro obstáculo superado. Finalmente, os cirurgiões poderiam continuar com a operação.
Era um alívio retornar à sala de cirurgia. Quando trocou de roupa e fez a assepsia, Longmore estava pronto para começar. A máquina coração-pulmão continuava a bombear. O sangue escuro saía; o sangue claro e brilhante retornava. O paciente ainda estava vivo; o coração do porco estava pronto. A cirurgia seguia seu curso.
Os procedimentos em si pareciam caminhar muito bem, surpreendentemente. O coração foi conectado ao sistema circulatório do paciente, pronto para mantê-lo vivo. A parte final envolvia uma simples injeção de cálcio no coração do porco. Nos seres humanos, essa substância é usada para fortalecer os músculos. Entretanto, como Longmore descobriu naquele momento, o efeito era diferente no porco. O coração do animal ficou duro como uma pedra. Era, portanto, inútil. Depois de todo aquele esforço, a operação falhou e o paciente morreu. Pouco consolava os cirurgiões o fato de saber que ele morreria de qualquer forma, mas, ao menos, puderam aprender com a experiência. A história ficou conhecida como “a noite do porco”, e, para culminar, a temida administradora do hospital havia sido acordada com os guinchos do porco e ficou furiosa. Um membro da equipe cirúrgica mandou para ela chuletas de porco para o desjejum, o que não ajudou em nada.
A medicina evoluiu não é mesmo ? Mas em certas ocasiões à duras penas e com episódios no mínimo curiosos. Mas o que realmente vale é a coragem da comunidade médica em assumir os riscos e tentar. Não é uma situação fácil, pois nesse processo, vidas foram perdidas. Mas com a coragem desses pioneiros, outras tantas foram salvas !!
Instrumentadoras de Plantão
Fonte: Trecho do Livro “Sangue e entranhas – a assustadora história da Cirurgia”