As Faces da Guerra – Queen Mary´s Hospital,1917

Fonte: Borough Archive Photos

As faces da guerra – Hospital Queen, em Sincup, Kent – 1917

Era difícil olhar para o Tenente William Spreckley, sem experimentar um sentimento de total repulsa. Ele mesmo, às vezes, desejava ter sido morto quando foi baleado. Sua existência, ele sentia, era quase de um morto-vivo. Ele havia sido levado das trincheiras da Batalha de Ypres ( uma vila belga ) ao hospital, antes de ser finalmente encaminhado a Sidcup, mas não tinha muita esperança a respeito de suas possibilidades com a sobrevivência. Ficaria desfigurado para sempre, rejeitado pela sociedade – talvez até mesmo por sua própria família.

William tinha um olhar triste e angustiado. Em vez de se sentir feliz por estar vivo, ele se lamentava. As balas dilaceraram tudo o que encontraram pela frente – fosse madeira, metal ou carne humana. Muito de seus companheiros haviam sido feridos: alguns, mortos instantaneamente, outros sobreviveram, mas em estado tão grave, que não havia possibilidade de recuperação, e o restante permanentemente incapacitado. William se lembrava do rápido clarão no momento crucial, mas estranhamente sentira pouca dor. Foi levado para longe do hospital de campanha, onde imaginava que fosse morrer. Em vez disso, nas próximas semanas começou a se recuperar. Sabia que sua face estava muito machucada, contudo as enfermeiras e médicos se recusavam a lhe dar um espelho. Os cirurgiões trataram de consertar o que puderam e as enfermeiras mudavam as bandagens. Quando ele chegou a Sidcup, seus ferimentos estavam cicatrizando. Ele estava em bom estado, saudável. Tudo ia bem, exceto seu rosto.

No lugar do nariz ele ostentava um terrível e grande buraco. A pele tinha crescido para dentro e o que restava daquela área interior – tecido vermelho e osso – podia ser visto através do buraco. O lado esquerdo de sua face estava distorcido ao redor do orifício; uma série de cicatrizes laterais repuxava a pele de seu olho, revelando a parte inferior de seu globo ocular. Mas aquilo não era nada comparado à falta do nariz.

O Queen, em Sidcup, era o primeiro hospital do mundo à cirurgia plástica, e as cercanias não podiam ser muito diferentes do que William havia experimentado nas trincheiras. Construído nos terrenos de uma casa majestosa, era cercado por jardins e imensas árvores, com um belíssimo gramado. As enfermarias, as salas de curativos e de cirurgia estavam dispostas em forma de ferradura, ao redor de um bloco constituído pela recepção central. Cada enfermaria, com capacidade para 26 camas, tinha uma varanda onde os pacientes podiam descansar quando tomavam ar fresco para auxiliar em sua convalescência ( ficar com áreas externas era considerado vital para a recuperação ).

Foto do Queen’s Hospital tirada em 1917. Fonte: Bexley Times

 

O Queen havia sido concebido pelo cirurgião Harold Gillies. Ele havia sido recrutado para a guerra em 1914, como médico recém formado, na Cruz Vermelha. Horrorizado com o que viu nos campos de batalha, ficou, porém, ainda mais chocado ao descobrir como os cirurgiões britânicos eram tão pouco capazes de juntar os pedaços dos soldados. Eles usavam técnicas primitivas e totalmente inadequadas. Ninguém fora capaz de imaginar, antes, aquela terrível carnificina – os rostos ficavam dilacerados, faltando partes como o nariz ou a mandíbula, as carnes derretendo e as imensas cicatrizes. Tudo que os cirurgiões podiam fazer era juntar as extremidades dos ferimentos e esperar que cicatrizassem para mandar os pacientes de volta às trincheiras para que lutassem mais um dia. Gillies decidiu dedicar sua vida à cirurgia plástica, tratando de aprender tudo o que fosse possível sobre reconstrução facial. Nos próximos 3 anos ( enquanto continuava a trabalhar nos hospitais da França e da Inglaterra ) ele estudou obstinadamente, mergulhando em livros e artigos de pesquisadores. Ele até cursou uma escola de arte para aprender como desenhar esquemas detalhados de suas cirurgias.

Sir. Harold Gillies – 1915 Fonte: http://www.gilliesarchives.org.uk/hdg.htm

Tratou, inclusive, de convencer as autoridades médicas do exército sobre a necessidade de dedicar um hospital ao tratamento de deformidades faciais.

Quando o Hospital Queen foi inaugurado, no verão de 1917, Gillies – agora transformado no mais famoso cirurgião plástico britânico  – foi nomeado para dirigi-lo. Ele estava pronto para testar seus vastos conhecimentos de cirurgia plástica.

Placa comemorativa em homenagem à contribuição do Dr. Harold Gillies à Cirurgia Plástica Fonte: Queen Mary’s Hospital

William Spreckley foi um dos primeiros pacientes a ser admitido no novo hospital.  Quando Gillies examinou o jovem soldado,  decidiu que o melhor seria dar a ele um novo nariz. Sua intenção era superar os esforços das gerações anteriores de seus colegas,  dando ao rapaz algo que realmente parecesse um nariz de verdade,  não uma rústica aleta de pele torcida a partir da testa ou de uma parte do braço.  Ele fez cuidadosas medições do rosto de Spreckley e planejou realizar nele uma série de operações complicadas.

Como o nariz do paciente havia desaparecido completamente,  Gillies imaginou recriar tanto a pele como a cartilagem para mantê-la. Em vez de repetir as experiências desastrosas de seus predecessores vitorianos e usar cartilagem animal ou alternativas sintéticas,  Gillies resolveu retirar essa membrana de alguma outra parte do corpo do próprio paciente.  Depois de desenhar uma série de complexos diagramas e de fazer anotações técnicas  – acreditava na importância da preparação  – ele estava pronto para operar.

No branco e arejado centro cirúrgico,  com uma poderosa iluminação elétrica e enormes janelas, o tenente Spreckley foi anestesiado.  Gillies,  com sua veste cirúrgica esterilizada, suas mãos cuidadosamente lavadas com álcool e calçadas com luvas de borracha, estava pronto para fazer a primeira incisão.  Cortou o peito de William. A primeira parte do procedimento era engenhosa e envolvia a retirada de um pequeno pedaço retangular da cartilagem da caixa torácica do soldado.  Gillies queria transformar aquilo na estrutura do nariz.  Cortando cuidadosamente a cartilagem,  ele dobrou o pedaço ao meio e, então,  cortou uma parte da secção central para deixar um buraco.  A peça ficou parecida com uma flecha. Em uma extremidade era mais larga,  na outra, estreita. A primeira formaria a base do nariz, de maneira que as beiradas serviriam de apoio às narinas. Quando Gillies se convenceu de que a cartilagem tinha o formato certo, ele fez um talho na pele da testa de William e enxertou a cartilagem sob a superfície.

Quando Spreckley se recuperou da operação,  ele parecia ainda mais deformado do que quando foi admitido no hospital. Em vez de sua testa outrora lisa – pois não havia sido danificada pelo projétil  – ele agora ostentava uma cicatriz, com um volume em forma de flecha sob a pele. Essa flecha ficava em sentido diagonal, sendo mais alta embaixo e mais baixa nas proximidades à linha dos cabelos. O que Gillies fizera foi promover o crescimento de um novo nariz,  no meio da testa do paciente.  Algumas semanas depois,  quando essa parte estava totalmente cicatrizada, o cirurgião partiu para uma nova operação.

Cortando cuidadosamente , para deixar a cartilagem intacta, tirou uma camada de pele da testa de Spreckley.  Assegurando-se de não danificar o pedículo, ele manteve a pele ao redor para formar o novo nariz. A cartilagem impedia o colapso da estrutura, embora a aparência do conjunto não fosse nada atraente. Abaixo da feia cicatriz triangular na testa do paciente,  o novo nariz parecia parecia um balão no rosto do soldado. De uma pessoa sem nariz, ele passou a ser alguém com uma protuberância,  algo semelhante a uma cômica representação de um nariz. Era uma coisa horrível.  Outros pacientes costumavam brincar, dizendo que Gillies havia transplantado um tronco no meio do rosto do pobre homem. Até mesmo o próprio cirurgião registrava, em seu caderno de anotações,  que “o novo entumecido caracol despontava como um formigueiro em forma de morro e todos os meus colegas irrompiam em gargalhadas”. Mas o cirurgião ainda estava longe de terminar o trabalho.

As operações continuaram. O inchaço gradualmente foi baixando e o pedículo cortado. Gillies fechou a cicatriz da testa e cortou o tecido excedente. Moldou as narinas e definiu a forma do novo nariz, cortando ou repuxando o excesso de pele. Quando Spreckley recebeu alta, seu rosto estava novo em folha. Agora, a transformação era formidável.  Olhando para ele, você nunca saberia que aquele nariz havia sido sido reconstruído a partir de uma cartilagem da costela e de pele da testa.

Spreckley ficou tão grato, que deu ao seu filho o nome de Michael Gillies,  em homenagem ao cirurgião que havia restaurado seu rosto.

*Imagens reproduzidas do livro que é fonte deste artigo.

As técnicas que Gillies usou para Spreckley eram corajosas, inovadoras e altamente experimentais. Embora suas operações fossem meticulosas e seus procedimentos antissépticos rigorosos, sempre havia o risco de que alguma coisa não desse certo.  O que o médico mais temia era uma infecção.  Se um dos cortes infectasse, havia pouco que ele pudesse fazer. Os casos que eram encaminhados ao hospital, no entanto, exigiriam que ele tentasse operações ainda mais ousadas.

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Sim, a guerra é uma situação triste e que todos gostaríamos que nunca acontecesse. Porém, até de uma situação difícil como a guerra, é possível tirar lições incríveis como a do Dr. Harold Gillies, que foi motivado pelo que viu no campo de batalha. Que possamos, como ele, tirar lições das mais variadas situações a fim de contribuir com o bem para as pessoas !!

 Instrumentadoras de Plantão

Trecho do livro “Sangue e entranhas – a assustadora história da cirurgia” – Richard Hollingham – 2011

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